Texto por Carlos von Schmidt - Curador e Crítico de Arte (2001 - São Paulo - SP - Brasil).
No céu de Mato Grosso do Sul satélites varrem a superfície de norte a sul de leste a oeste. Tudo vêem. Tudo registram. Só não captam o que a mulher branca e o neto dos Pareci, aculturado, engendram. Arte.
Em Tupi-Guarani Peretá quer dizer estrada, caminho. Na encruzilhada do Peretá, a caraíba, ser sobrenatural, anjo da guarda, branca, encontrou o descendente dos Pareci.
Ambos são artistas. Para ela o índio é a fonte, a inspiração, para ele, o branco. A caraíba tem formação acadêmica. O homem é autodidata. O que sabe aprendeu sozinho ou ajudando o pai, índio Pareci, esculpir. Madeira, mármore, arenito. Lúcia Coelho Barbosa, a caraíba, poderia fazer pintura de ateliê. Não faz da pintura, veículo para amenidades. Não fez, nem faz. Optou pelo caminho mais difícil. Registrar e interpretar o esquecido e desprezado universo do índio brasileiro.
Lúcia não ignora que o tema é complexo. Polêmico. Nada fácil. Usado e abusado o índio muitas vezes não passa de massa de manobra de ONGs nacionais e internacionais e de políticos oportunistas e corruptos.
Restringindo-se à cultura, à arte indígena, que estuda e pesquisa, foi fundo. Sem deixar-se envolver pelo canto sedutor das sereias que fazem lobby em Brasília, indiferente às críticas superficiais e descabidas ao seu trabalho junto aos índios, perseverou.
Foi graças a essa determinação e dedicação que os índios Bororo de Meruri a receberam como se índia fosse. Em cerimônia tribal que varou a noite de sábado à madrugada de domingo, deram-lhe o nome de "Cibae Ekureudo", "Arara Amarela Resplandecente".
Não foi por seus belos olhos que os Bororo a acolheram. Foi por seu mérito. Índio só dá se merecer. Lúcia mereceu. Sem deslumbrar-se com a honraria e o resplendor do nome, Lúcia que podia viver em Paris, se quisesse, continuou a embrenhar-se no mato, a viver a sua vida de de artista, a desenhar, pintar, a interpretar o que via nas tribos e o que a natureza lhe mostrava. Peretá, estrada, caminho, é isso.
Às sua impressões acrescentou as dos índios Bororo, Txucahamãe, Urubú-Kaa'por, Kayapó-Xikrin, Juruna, Waiãpi, Assurini, Xavante, Tucano, Kadwèu e Terena. Quando em Agosto do ano passado visitei seu ateliê em Campo Grande e vi os objetos tribais recolhidos em suas expedições, disse-lhe que não conseguiria dissociar suas pinturas desse rico material... Fazê-lo seria crime de omissão. De lesa beleza. Imperdoável.
Falou mais alto do que este velho escriba o adolescente que, nas Cascatas das Emas próximo a Pirassununga, cavava a procura de igaçabas dos Painguá. Inesquecível encontrar as igaçabas, urnas funerárias. Experiência única. Sei que Harald Schultz, Darcy Ribeiro, não me perdoariam se não mostrasse o que Lúcia trouxe do mato. As máscaras festivas do tamanduá, do macaco Txucahamãe, dos perfis Uaurá. Lúcia também não.
Imaginei-as sobre um jirau, atrás de redes de buriti. Aproveitei para exibir a pasta vermelha de urucum, a tinta preta do jenipapo, o cauim, beberagem de mandioca fermentada, folhas e ervas medicinais e alucinógenas. Fazem parte do universo indígena e tem a ver com o mundo real e o outro. Ignorá-las seria imperdoável.
Em contato com a cultura, com a arte e com o dia-a-dia do índio, Lúcia captou e capta a essência que sua obra revela. Assim, os desenhos corporais, as pinturas nos objetos, os símbolos, os signos, as penas, as peles, os couros, as máscaras, os rituais como o Quarup, revelam micros e macros universos desconhecidos, ignorados por nós.
Penetrá-los através da rica e sensível fabulação de Lúcia Coelho Barbosa é percorrer parte do caminho, do Peretá. A outra, árdua, difícil, distante poucos ousam. Lúcia, sim!
Filho de José Carlos da Silva, o Índio, Pareci que marcou as margens do Rio Taquarussú próximo a Aquidauana, Mato Grosso do Sul, com suas esculturas que parecem brotar das águas, Sandro Luiz da Silva, seguiu as pegadas de seu pai. Ao contrário de Lúcia, procurou no universo caraíba do qual faz parte, inspiração. Suas esculturas estão a anos-luz das ocas, dos rituais. Sandro trabalha o arenito, o mármore.
Às vezes, cortes verticais marcam as pedras. Talvez nessas incisões estejam marcas de um passado remoto, mas não distante. Traços que um Pareci fazia e faz na madeira ou pintava e pinta no corpo. Talvez...
Peretá - text by Carlos von Schmidt
Satellites sweep the skies of Mato Grosso do Suland the forests from north to south, from east to west. The satellites capture signals emitted from the land. But may be not capture the creations of the white woman or the grandson of the Pareci, accultured in the ways of the whiteman. The satellites cannot capture the art they engender.
In the Tupi-Guarani language Peretá means a path. In the crossroad of the Peretá, inhabits the "caraíba" the Tupi-Guarani term for the white man - conceived as supernatural being, sometimes as a white guardian angel - encountered the descendents of the Pareci. Both the white woman and the descendant of the Pareci are unique artists. Forthe woman the Indian is the source, the inspiration. For the man the white man. The write woman - "caraíba" - has a formal academic training. The man is self taught. He learned his métier by himself or by helping his father, a Pareci Indian, to sculture. Woos, marble, arenite were the materials used by his father.
Lucia Coelho Barbosa, caraíba, the white woman, could, if she wanted to, paint in the relative comfort of an atelier. She does not use painting as a vehicle for expressing amenities. She never did, she never does. She close the more difficult path - to register and interpret the forgottenand depreciated universe of the Brazilian Indian.
Lucia is well aware that the theme is complex and polemical. I'ts not easy. Used and abused, the Indian often is just a tool, a ploy in the maneuvers of some national and international non governmental organizations and apportunistic and corrupt politicians. Restricting herself to their culture, to their indigenous art, which she has studied deeply, Lucia has gone to the root of their soul. Without involving herself with the seductive charm of the sirens who lobby in Brasilia, and indifferent to the superficial and irrelevant critics of her work with the Indians, she has persevered and prevailed.
Thanks to her dedication and determination, the Bororo Indians of Mereri have receives her as a member of the tribe. In a tribal ceremony which lasted all night from Saturday evening till Sunday morning they gave her the name Cibae Ekureudo, The Resplendent Yellow Macaw.
The Bororo did not take her in as one of them for her beautiful eyes. She became a tribes woman for her own merit. Indians only award people for their merit. Without being overwelmed by honor and the splendor of her name, Lúcia, who cold live in Paris if she wanted to continued to dig her roots even deeper in the Amazon forest and live the life of the artist, drawing, painting, interpreting whats she has learned from the Indians, from what she has absorbed from nature.
Her impressions absorb the impressions, the culturesof the various tribes: Bororo, Txucahamãe, Urubú-Kaa'por, Kayapo-Xikrin, Juruna, Waiãpi, Assurini, Xavante, Tucano, Kadwéu and Terena. When I visited her atelier last August in Campo Grande and saw the tribal objects collected in her expeditions I told her that I would not be able to disassociate her paintings from the rich material. To do so would be a crime of omission. An unpardonable crime of lesé beauté.
Her work has a marked impact, a far greater force than all the words written by this aging yet adolescent critic who, iin earlieryears, in the Cascatas das Emas near Pirassununga, excavated for igaçabas, funeral urns, of the Painguá Indians. I know that Harald Schultz, Darcy Ribeiro, would never forgiveme if I did not exhiibit what Lucia has brought in fron the forest. Not either, Lucia. The festive masks of the tamanduá, macaco Txuxahamãe and Uaurá profiles. I can just imagine them on a jirau - a makeshift made of taquara and tree branchs -behind the buriti palm hammocks.Also seen in the exibit are the native Indian forms of coloration - the red urucum coloring, the black paint of the jenipapo, painted often under the influence of cauim, which comes from the fermented of indifenous mandioca, medicinal herbs and halluciogenic leaves.
The urucum, the jenipapo, the cauim, the leaves and herbs are part of the indigenous universe and has a lot to do with their life and art. It would be unpardonable not accept this fact.
In contact with the culture, with the art and the day-to-day life of the Indian Lucia captures their essence in her work - the description of their body drawings, the paintings on their artifacts, the symbols, the designs, feathers, skin, leather, and rituals like Quarup reveal a micro and macro universe unknown to us, ignored by us.
To enter the world of the Indians throught the rich and sensitive fabled art of Lucia Coelho Barbosa is toenter partially in the worls of the Peretá. The rest of the wayarduous, difficult, very far away and very few dare or care to make the effort. But Lucia has managed to penetrate this rich and complex universe.
The son of José Carlos da Silva, a Pareci Indian whon was known for marking the banks of the Taquarussu River near Aquidauana,Mato Grosso do Sul, wuth his sculptures that seem to sprout outof the water, Sandro Luiz da Silva, has followed the footsteps pf his father. Unlike Lucia, he sought the caraiba universe in which inspiration plays its part. His sculptures are light years away from the indian tribal huts, ocas an rituals. Sandro formulares his inspirations in arenite and marble and wood.
Sometimes the vertical cuts mark the rocks. Perhaps these incisions are marks of a remote but not too distant past. Markings that a Pareci would make and still makes in the wood or on his boby paintings. Perhaps...
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